segunda-feira, 18 de maio de 2015

Saber esperar

Para o meu chão,

Saber esperar tem nome de semana e de greve da TAP.
A história começa assim:

Era uma vez uma mala e um corpo viajado por serras, vales, areias vulcânicas e águas de mar. O corpo tinha na mão um bilhete de regresso com data marcada, no meio de uma greve e a mala tinha um interior para ser selado com um fecho e um cadeado.
O corpo banhou-se, estendeu creme hidratante, acomodou partes de si na mala, correu-lhe o fecho e num suspiro de ternura colocou-lhe o cadeado: estavam unidos para a viagem.
O corpo sentou-se no sofá e percorreu a página do aeroporto: havia voos cancelados, outros de porta aberta e havia o seu que permanecia silencioso. O corpo distraía-se em palavras escritas e a mala aguardava no fundo das escadas. Cada um no seu canto souberam do cancelamento do voo. A greve apanhara-os num sopro de vento e não podiam mais ficar neste lugar de cama às riscas, até porque há uma lei que dita os direitos e os deveres dos passageiros.
Juntos, num quatro rodas, foram ao aeroporto na esperança de um lugar num outro avião ou num outro lugar para dormir, como ditam as regras. Não havia outro avião, mas houve um lugar para dormir e comer durante quase uma semana.








 O corpo agarrou na mala ao colo, estendeu-a no chão, retirou-lhe o cadeado e correu-lhe o fecho. A mala respirou de alívio e o corpo dormiu.
Haveria de ter voo dali a dois dias, pensou, por isso havia tempo de fazer o que ainda não tinha sido feito, como ir à praia em trajes próprios, como dormir e escrever palavras em viagem e palavras sérias, fechadas entre pontos e vírgulas.







Era manhã, despertou com o som das ondas, espreguiçou-se na varanda voltada para o mar. A mala continuava deitada, esperando que lhe desse um beijo de bom-dia antes de ir tomar o pequeno-almoço.
O corpo tem estas coisas de precisar de alimento de duas em duas ou de três em três horas. A mala conhece-o bem, por isso aguardava pacientemente no chão, enquanto viu os seus pés descalços aproximarem-se.


O corpo procurou espaço na mala, guardou pertences, mas não correu o fecho. Pensava fazê-lo no final de jantar, porquê ter pressa?
No mais pequeno recanto de si a mala agradeceu não ter começar já a suster a respiração.

O tempo passou, os pés descalços voltaram a tocar o chão. Perto deles a mala percebeu que as suas rodas não deslizariam até ao aeroporto. No dia seguinte saberia que teria de esperar mais dois dias. A história repetiu-se: não havia lugar no avião.

O corpo e mala descobririam que a espera é como um corredor cheio de portas e quando nenhuma se abre é porque a espera termina no fundo do corredor.



O corpo domiu, escreveu, conversou, saltou, riu nadou, bronzeou-se, limpou a areia dos pés, almoçou, jantou, sorriu, dançou no "Fogo d'África", conheceu novos lugares e... e era domingo. Dia de um novo voo.








Mas ainda havia tempo de conhecer a praia de S. Francisco e não importava que a manhã tivesse sido de praia Kebra Canela.








O dia ia terminando para lá da varanda, o corpo queria voltar, queria tocar outro chão com os seus pés descalços. A mala sentia-lhe a ansiedade disfarçada, no bater do coração.
O corpo encheu-a de si e de lembranças da terra. Pediu-lhe que encolhesse um pouco a barriga, correu-lhe levemente o fecho e pô-la de pé, para que ela voltasse a sentir o chão nas suas rodas.
O corpo deu-lhe a mão e juntos percorreram o chão até ao aeroporto... e do aeroporto até casa.
Agora ela repousa no sótão, até à próxima viagem, e ele anda por aí à espera de um chão no mundo, para voltar a viajar com ela.

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